O
evangélico desavisado que entrar no número 560 da avenida Celso
Garcia, no bairro paulistano do Brás, poderá achar que não está entrando
em um culto da Assembleia de Deus.
Maior denominação pentecostal do País – estima-se que tenha 15 milhões
de adeptos, cerca de metade dos protestantes brasileiros –,
historicamente ela foi caracterizada pela postura austera, pelo
comedimento na conduta e, principalmente, pelas vestimentas discretas de
seus membros. Por conta dessa última particularidade, tornou-se
folclórica por forçar seus fiéis a celebrarem sempre, no caso dos
homens, de terno e gravata e, entre elas, de saia comprida, camisa
fechada até o punho e cabelos longos que deveriam passar longe de
tesouras e tinturas. Era a igreja do “não pode”. Não podia, só para
citar algumas interdições extratemplo, ver tevê, praticar esporte e
cultuar ritmos musicais brasileiros. A justificativa era ao mesmo tempo
simples e definitiva: eram coisas do capeta.
No templo do Brás, porém, às 19h30 do domingo 15, um grupo de cerca
de vinte fiéis fazia coreografias, ao lado do púlpito, ao som de uma
batida funkeada. Seus componentes – mulheres maquiadas e com cabelos
curtos tingidos, calça jeans justa e joias combinando com o salto alto;
homens usando camiseta e exibindo corte de cabelo black power – outrora
sofreriam sanções, como uma expulsão, por conta de tais “ousadias”.
Mas ali eram ovacionados por uma plateia formada por gente vestida de
forma parecida, bem informal. Palmas, também proibidas nas celebrações
tradicionais, eram requisitadas pelo pastor Samuel de Castro Ferreira,
líder do templo e um dos responsáveis por essa mudança de mentalidade
na estrutura da Assembleia de Deus,
denominação nascida em Belém, no Pará, que irá festejar seu centenário
no mês que vem. “Muitos chamam de revolução, mas o que eu faço é uma
pregação de um evangelho puro, sem acessórios pesados”, afirma ele, 43
anos, casado há vinte com a pastora Keila, 39, e pai de Manoel, 18, e
Marinna, 14. “A maior igreja evangélica do País está vivendo um
redescobrimento.”
Sentado em uma cadeira logo ao lado do coral, Ferreira, que assistiu à
televisão pela primeira vez na casa do vizinho, aos 7 anos, escondido
do pai, Manoel Ferreira, pastor assembleiano, desliza o dedo indicador
em um iPad segunda geração enquanto o culto se desenrola. Acessa a sua
recém criada página no Twitter por meio da qual, em apenas um mês,
amealhou mais de 110 mil seguidores. Quando se levanta para pregar a
palavra, deixa visível o corte alinhado de seu terno e a gravata que
combina com o conjunto social. Não que o pastor se furte em pregar de
jeans, tênis e camisa esporte – tem predileção por peças da Hugo Boss –,
como faz em encontros de jovens. “Samuel representa a Assembleia de
Deus moderna, com cara de (Igreja) Renascer (em Cristo)”, opina o
doutorando em ciências da religião Gedeon Alencar, autor de “Assembleias
de Deus – Origem, Implantação e Militância” (1911-1946), editora Arte
Editorial. “Os mais antigos, porém, acham o estilo dele abominável.”
Natural de Garça, interior de São Paulo, formado em direito e com uma
faculdade de psicologia incompleta, Ferreira é vice-presidente da
Convenção de Madureira, que é comandada por seu pai há 25 anos e da qual
fazem parte 25 mil templos no Brasil, entre eles o do Brás. Os
assembleianos não são uma comunidade unificada em torno de um líder. Há,
ainda, os que seguem a Convenção Geral, considerada o conglomerado
mais poderoso, e o grupo formado por igrejas autônomas. Ferreira
assumiu o templo da região central da capital paulista há cinco anos e
passou a romper com as tradições. Ao mesmo tempo, encarou uma cirurgia
de redução de estômago para perder parte dos 144 quilos. “Usar calça
comprida é um pecado absurdo que recaía sobre as irmãs. Não agride a
Deus, então liberei”, diz o pastor, 81 quilos, que até hoje não sabe
nadar e andar de bicicleta porque, em nome da crença religiosa, foi
proibido de praticar na infância e na adolescência.
Sua Assembleia do “pode” tem agradado aos fiéis. “Meu pai não
permitia que eu pintasse as unhas, raspasse os pelos ou cortasse o
cabelo”, conta a dona de casa Jussara da Silva, 49 anos. “Furei as
orelhas só depois dos 40 anos. Faz pouco tempo, também, que faço luzes”,
afirma Raquel Monteiro Pedro, 47 anos, gerente administrativa.
Devidamente maquiadas, as duas desfilavam seus cabelos curtos e tingidos
adornados por joias pelo salão do Brás, cuja arquitetura, mais
parecida com a de um anfiteatro, também se distingue das igrejas mais
conservadoras.
A relativização dos costumes da Assembleia de Deus se dá em uma época
em que não é mais possível dizer aos fiéis que Deus não quer que eles
tenham vaidade. A denominação trabalha para atender a novas demandas da
burguesia assembleiana, que, se não faz parte da classe média, está
muito perto dela, é urbana e frequenta universidades. É esse filão que
está sendo disputado. Uma outra igreja paulista já promoveu show no
Playcenter. No Rio de Janeiro, uma Assembleia de Deus organiza o que
chama de Festa Jesuína, em alusão à Festa Junina. Segundo o estudioso
Alencar, as antigas proibições davam sentido ao substrato de pobreza do
qual faziam parte a grande maioria dos membros da Assembleia de Deus.
“Era confortável para o fiel que não tinha condição de comprar uma
televisão dizer que ela é coisa do diabo. Assim, ele vai satanizando o
que não tem acesso.”
Importante figura no mundo assembleiano, o pastor José Wellington
Bezerra da Costa, 76 anos, presidente da Convenção Geral, não é adepto
da corrente liberal. “Samuel é um menino bom, inteligente, mas é liberal
na questão dos costumes e descambou a abrir a porta do comportamento”,
afirma. Ferreira, por outro lado, se diz conservador, principalmente
na questão dos dogmas. Em suas celebrações, há o momento do dízimo, do
louvor, da adoração e um coral clássico. Ao mesmo tempo, é o torcedor
do Corinthians que tuita pelo celular até de madrugada – dia desses,
postou que saboreava um sorvete às 4h30 –, viaja de avião particular e
não abre mão de roupas de grife. Um legítimo pastor do século XXI.
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